"365 DIAS"
R.L.
Segundo meus amigos, sou uma pessoa segura e educada, razoavelmente inteligente, organizado e criativo. Mas, na maior parte da minha vida adulta, por 14 dias em cada ano, eu me sentia como se não possuisse nenhuma dessas qualidades. E o pior é que isto acontecia quando meus pais que moravam a 1600 kms de distância durante 351 dias no ano, vinham me visitar. Em todos os outros dias eu levava minha vida muito bem, como esposo, pai, executivo e fazendo meu trabalho voluntário. Mas a visita deles era uma agonia verdadeira para mim.
Essa é uma história muito antiga. Como filho mais velho, tinham sido colocadas muitas expectativas de sucesso e responsabilidade sobre mim. E a minha sensação era que, por mais que eu fizesse, nunca corresponderia a elas. O fato de ter ido morar longe, com uma esposa que me amava do jeito que eu era, trouxera uma grande liberação. Mas bastava que meus pais se aproximassem para acordar o menininho intimidado que persistia em existir dentro de mim. Eu me sentia ressentido com eles por ainda terem o poder de me fazer inseguro e incompetente.
Não era eu apenas que sofria durante as visitas dos meus pais mas todos à minha volta também. Certamente minha querida esposa sofria comigo também. Nas semanas anteriores à visita, eu mandava os empregados limparem a casa, tratar do jardim, limpar a piscina fazendo-a ficar azul, consertava tudo que estivesse quebrado, mandava instalar cortinas novas, comprava travesseiros e lençóis. Recomendava refeições finas e aconselhava meus filhos a se comportarem educadamente falando sempre em voz baixa. Durante a visita havia sempre uma aura de tensão ao meu redor. Depois da visita seguiam-se noites de discussões com minha esposa. Eu ficava tentando decifrar o que meu pai dissera ou não dissera. E me entristecia muitíssimo, sentindo-me como uma criança rejeitada e cansada. Em 30 anos de casamento houve vários altos e baixos, mas a prova real do amor de minha esposa era me ajudar a sobreviver a essas visitas.
Um dia um amigo me convidou para participar de um grupo de espiritualidade e um mundo novo se abriu para mim. Passei a ler sobre o assunto e a meditar diariamente, e fui adquirindo uma paz interior que jamais conhecera. O tema que mais me fascinava era o do perdão. Perdoar, desapegar-se dos ressentimentos, compreender que aqueles que nos fizeram sofrer na maioria das vezes não tinham consciência disso e reproduziam apenas algo de que tinham sido vítimas.
Então meu pai foi acometido do mal de Parkinson. Em pouco tempo, o homem cheio de vida, inteligente, o deus atlético da minha infância se transformou num velhinho cambaleante desolado e confuso. Talvez essa sua vulnerabilidade tenha evidenciado os aspectos frágeis de sua personalidade. O fato é que tornou-se muito mais fácil para mim perdoá-lo.
E assim fiz. Apenas disse várias vezes em voz alta: "Eu perdôo você, papai," A mágoa foi se dissolvendo e deixando fluir o amor que eu sentia por ele. Consegui ir me livrando das imposições e exigências que já não vinham de meus pais, mas de mim mesmo. Apossei-me de meu ser, de meu próprio desejo, de meus sentimentos, e tudo isso me trouxe muita paz.
Jamais disse claramente a meu pai que o havia perdoado, mas isso deve ter ficado claro para ele em algum nível, pois toda a nossa relação se transformou.
No outono anterior à sua morte, meu pai veio sozinho ficar conosco por duas semanas. Eu o recebi com tranquilidade, sem os preparativos e a tensão das outras vezes. Senti-o como um amigo com quem foi bom conversar de coração aberto, falando de mim e ouvindo-o contar sua vida.
Pela primeira vez em nossas vidas tivemos gestos de carinho um com o outro e ele disse como se sentia à vontade em nossa casa, como era bonito o meu jardim florido. Na hora de se despedir, meu pai me abraçou forte, beijou meu rosto e disse algo que nunca havia dito antes: "Meu filho, eu te amo muito."
Meu pai nunca mais voltou à minha casa. Depois que ele morreu, minha mãe mandou fazer um vídeo, com fundo musical e tudo mais, com as passagens mais gloriosas de sua vida. Neste momento, levanto os olhos do que estou escrevendo e vejo a fita na prateleira de livros. Jamais assisti ao vídeo. O essencial de minha vida com meu pai se concentrou naquelas duas semanas. As lembranças que desejo guardar são dele na varanda, na cadeira de vime, regando as palntas de meu jardim, brincando, conversando, partilhando a vida conosco.
O perdão total e incondicional trouxe conforto para minha alma e me abriu as portas para uma vida que nunca imaginaria possível.
Atualmente, além de ser esposo, pai, avô e na maioria das vezes estar sempre sorrindo, sou inteiramente uma pessoa 365 dias por ano.
R.L.
Segundo meus amigos, sou uma pessoa segura e educada, razoavelmente inteligente, organizado e criativo. Mas, na maior parte da minha vida adulta, por 14 dias em cada ano, eu me sentia como se não possuisse nenhuma dessas qualidades. E o pior é que isto acontecia quando meus pais que moravam a 1600 kms de distância durante 351 dias no ano, vinham me visitar. Em todos os outros dias eu levava minha vida muito bem, como esposo, pai, executivo e fazendo meu trabalho voluntário. Mas a visita deles era uma agonia verdadeira para mim.
Essa é uma história muito antiga. Como filho mais velho, tinham sido colocadas muitas expectativas de sucesso e responsabilidade sobre mim. E a minha sensação era que, por mais que eu fizesse, nunca corresponderia a elas. O fato de ter ido morar longe, com uma esposa que me amava do jeito que eu era, trouxera uma grande liberação. Mas bastava que meus pais se aproximassem para acordar o menininho intimidado que persistia em existir dentro de mim. Eu me sentia ressentido com eles por ainda terem o poder de me fazer inseguro e incompetente.
Não era eu apenas que sofria durante as visitas dos meus pais mas todos à minha volta também. Certamente minha querida esposa sofria comigo também. Nas semanas anteriores à visita, eu mandava os empregados limparem a casa, tratar do jardim, limpar a piscina fazendo-a ficar azul, consertava tudo que estivesse quebrado, mandava instalar cortinas novas, comprava travesseiros e lençóis. Recomendava refeições finas e aconselhava meus filhos a se comportarem educadamente falando sempre em voz baixa. Durante a visita havia sempre uma aura de tensão ao meu redor. Depois da visita seguiam-se noites de discussões com minha esposa. Eu ficava tentando decifrar o que meu pai dissera ou não dissera. E me entristecia muitíssimo, sentindo-me como uma criança rejeitada e cansada. Em 30 anos de casamento houve vários altos e baixos, mas a prova real do amor de minha esposa era me ajudar a sobreviver a essas visitas.
Um dia um amigo me convidou para participar de um grupo de espiritualidade e um mundo novo se abriu para mim. Passei a ler sobre o assunto e a meditar diariamente, e fui adquirindo uma paz interior que jamais conhecera. O tema que mais me fascinava era o do perdão. Perdoar, desapegar-se dos ressentimentos, compreender que aqueles que nos fizeram sofrer na maioria das vezes não tinham consciência disso e reproduziam apenas algo de que tinham sido vítimas.
Então meu pai foi acometido do mal de Parkinson. Em pouco tempo, o homem cheio de vida, inteligente, o deus atlético da minha infância se transformou num velhinho cambaleante desolado e confuso. Talvez essa sua vulnerabilidade tenha evidenciado os aspectos frágeis de sua personalidade. O fato é que tornou-se muito mais fácil para mim perdoá-lo.
E assim fiz. Apenas disse várias vezes em voz alta: "Eu perdôo você, papai," A mágoa foi se dissolvendo e deixando fluir o amor que eu sentia por ele. Consegui ir me livrando das imposições e exigências que já não vinham de meus pais, mas de mim mesmo. Apossei-me de meu ser, de meu próprio desejo, de meus sentimentos, e tudo isso me trouxe muita paz.
Jamais disse claramente a meu pai que o havia perdoado, mas isso deve ter ficado claro para ele em algum nível, pois toda a nossa relação se transformou.
No outono anterior à sua morte, meu pai veio sozinho ficar conosco por duas semanas. Eu o recebi com tranquilidade, sem os preparativos e a tensão das outras vezes. Senti-o como um amigo com quem foi bom conversar de coração aberto, falando de mim e ouvindo-o contar sua vida.
Pela primeira vez em nossas vidas tivemos gestos de carinho um com o outro e ele disse como se sentia à vontade em nossa casa, como era bonito o meu jardim florido. Na hora de se despedir, meu pai me abraçou forte, beijou meu rosto e disse algo que nunca havia dito antes: "Meu filho, eu te amo muito."
Meu pai nunca mais voltou à minha casa. Depois que ele morreu, minha mãe mandou fazer um vídeo, com fundo musical e tudo mais, com as passagens mais gloriosas de sua vida. Neste momento, levanto os olhos do que estou escrevendo e vejo a fita na prateleira de livros. Jamais assisti ao vídeo. O essencial de minha vida com meu pai se concentrou naquelas duas semanas. As lembranças que desejo guardar são dele na varanda, na cadeira de vime, regando as palntas de meu jardim, brincando, conversando, partilhando a vida conosco.
O perdão total e incondicional trouxe conforto para minha alma e me abriu as portas para uma vida que nunca imaginaria possível.
Atualmente, além de ser esposo, pai, avô e na maioria das vezes estar sempre sorrindo, sou inteiramente uma pessoa 365 dias por ano.
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