"A PRIMEIRA CARTILHA"
R.L.
Há coisas que a gente não esquece: a primeira namorada, a primeira professora, a primeira cartilha. Minha introdução às letras foi feita através de um livrinho chamado "Queres ler?" (assim mesmo, com ponto de interrogação). Era um clássico, embora tivesse alguns problemas: em primeiro lugar, tratava-se de um livro uruguaio, traduzido (o que era um vexame: cartilhas, pelo menos, deveriam ser nacionais). Em segundo lugar, era uma obra aberta e indiscreta: trazia instruções pormenorizadas sobre a maneira pela qual os professores deveriam usar o livro com os alunos. Quer dizer: era, também, para os professores, uma cartilha, o que, se não chegava a solapar a imagem dos mestres, pelo menos os colocava em relativo pé de igualdade com os alunos (pé de igualdade, não: menos. Pé de página, e em letras bem pequenas). Isto talvez fosse benéfico, porque um estímulo tínhamos para aprender a ler: ansiávamos pra descobrir os segredos dos mestres.
Em terceiro lugar - mas isto era grave - , a cartilha começava com a palavra "uva". Com a palavra só, não: havia uma ilustração mostrando um grande, suculento, cacho de uvas (estrangeiras, naturalmente). Era um suplício olhar aquelas uvas (aliás, à época, uva designava, e não por acaso, uma dona boazuda), principalmente para os alunos mais pobres cujo único contato com o fruto da videira era exatamente através daquela figura.
Bem, não é isto o que importa. O que importa é que aquele era o nosso primeiro livro, o livro que carregávamos com orgulho em nossa pastinha. E o que importa, também, é que esse livro, o livro que jamais esqueceríamos, tinha um nome provocadoramente amável: ele não ordenava, ele perguntava; ele não só perguntava, ele convidava. E não sei de que outra maneira se possa introduzir uma criança à leitura, se não através de um sedutor convite. Porque ler é um ato da vontade. Diante da TV se pode ficar passivo, absorvendo imagens e sons. A televisão não indaga, ela se impõe. E pode se impor por causa da força de uma tecnologia que é absolutamente totalitária: do universo eletrônico no qual vivemos ninguém escapa.
Ler, não. Ler exige esforço. No mundo da leitura só se entra pagando ingresso. Decodificar as letras, transformá-las em imagens é uma arte, como é uma arte tocar um instrumento musical. Mas aqueles que entram no mundo da leitura, aqueles que a ele são bem conduzidos, estes encontram nos livros um lar, uma pátria, o território dos sonhos e das emoções.
"Queres ler?" - pergunto a meu filho, e espero que a resposta dele seja afirmativa. Para que ele possa provar a uva da qual é feito o doce vinho da fantasia arrebatadora.
R.L.
Há coisas que a gente não esquece: a primeira namorada, a primeira professora, a primeira cartilha. Minha introdução às letras foi feita através de um livrinho chamado "Queres ler?" (assim mesmo, com ponto de interrogação). Era um clássico, embora tivesse alguns problemas: em primeiro lugar, tratava-se de um livro uruguaio, traduzido (o que era um vexame: cartilhas, pelo menos, deveriam ser nacionais). Em segundo lugar, era uma obra aberta e indiscreta: trazia instruções pormenorizadas sobre a maneira pela qual os professores deveriam usar o livro com os alunos. Quer dizer: era, também, para os professores, uma cartilha, o que, se não chegava a solapar a imagem dos mestres, pelo menos os colocava em relativo pé de igualdade com os alunos (pé de igualdade, não: menos. Pé de página, e em letras bem pequenas). Isto talvez fosse benéfico, porque um estímulo tínhamos para aprender a ler: ansiávamos pra descobrir os segredos dos mestres.
Em terceiro lugar - mas isto era grave - , a cartilha começava com a palavra "uva". Com a palavra só, não: havia uma ilustração mostrando um grande, suculento, cacho de uvas (estrangeiras, naturalmente). Era um suplício olhar aquelas uvas (aliás, à época, uva designava, e não por acaso, uma dona boazuda), principalmente para os alunos mais pobres cujo único contato com o fruto da videira era exatamente através daquela figura.
Bem, não é isto o que importa. O que importa é que aquele era o nosso primeiro livro, o livro que carregávamos com orgulho em nossa pastinha. E o que importa, também, é que esse livro, o livro que jamais esqueceríamos, tinha um nome provocadoramente amável: ele não ordenava, ele perguntava; ele não só perguntava, ele convidava. E não sei de que outra maneira se possa introduzir uma criança à leitura, se não através de um sedutor convite. Porque ler é um ato da vontade. Diante da TV se pode ficar passivo, absorvendo imagens e sons. A televisão não indaga, ela se impõe. E pode se impor por causa da força de uma tecnologia que é absolutamente totalitária: do universo eletrônico no qual vivemos ninguém escapa.
Ler, não. Ler exige esforço. No mundo da leitura só se entra pagando ingresso. Decodificar as letras, transformá-las em imagens é uma arte, como é uma arte tocar um instrumento musical. Mas aqueles que entram no mundo da leitura, aqueles que a ele são bem conduzidos, estes encontram nos livros um lar, uma pátria, o território dos sonhos e das emoções.
"Queres ler?" - pergunto a meu filho, e espero que a resposta dele seja afirmativa. Para que ele possa provar a uva da qual é feito o doce vinho da fantasia arrebatadora.
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