"DEVER DE CASA"
R.L.
Ninguém pode deixar de se comover quando um filho volta do colégio trazendo pela primeira vez um tema para ser feito em casa. Você o olha e vê, não mais o menino, mas um homenzinho responsável. Pois é o que caracteriza todos nós, homens responsáveis: temos temas para fazer em casa, não nos desligamos jamais das preocupações. E agora seu filho saberá o que é responsabilidade.
Bem, não é para tanto. Para início de conversa, você tem de ajudar a fazer o tema. Aparentemente não é difícil: trata-se de colar numa folha de papel figuras de índios. Uma homenagem ao Dia do Índio, aliás muito justa, porque, se os índios não foram os primeiros a fazer deveres de casa, neste país, foram os primeiros a fazer casa. Só que esta homenagem envolve um problema: onde arranjar figuras de índios? Em revistas velhas, é logo o que vem à mente. Você se lembra de ter visto dezenas de fotos de índios em revistas, porque índio sempre é notícia ( ainda que os coitados preferissem, provavelmente, ser deixados em paz nas suas terras). Você vai procurar as revistas e aí, só porque você precisa de foto de índio, não encontra nenhuma. Há umas fotos de um cacique tomando posse na FUNAI, mas será que índio de terno e gravata é índio? O próprio cacique tem dúvidas quanto a isto, de modo que você resolve deixá-lo de lado. Também há fotos do Carnaval, mas, de novo: fantasia de índio nunca foi índio. Você compra então a Revista Geográfica, que sempre mostra fotos de gente e lugares interessantes, e lá há de fato uma foto de índias, só que não são brasileiras, e além disso estão nuas. "Estas são boas!" - grita o menino, e ainda que você concorde (por razões diferentes das dele, é óbvio), você teme ferir os pruridos da professora. Claro, você podia colar uma tira preta nas partes prudentes, como a censura fazia; mas aí a coisa já não é autêntica.
A esta altura, você já revirou toda a casa, para desespero de sua mulher, e concluiu: não há em casa nenhuma publicação com foto de índio. O jeito é ir a uma banca de revistas para ver se encontra algo que sirva. Só que são 23:00 e está chovendo, e a banca mais próxima está no centro da cidade. Contudo, dever de casa é dever de casa, e seu menino não pode fugir da responsabilidade. Ou melhor, você não pode fugir da responsabilidade. Sendo assim, você apanha o carro e vai até o centro. Chegando à banca, você começa a folhear as revistas, para irritação do italiano, que imediatamente pergunta o que você deseja.
Você diz a ele que quer uma revista com fotos de índios e ele compreende: ele também é pai e também tem de fazer lições para os filhos. Ele não tem nada do gênero, mas sabe onde mora um índio autêntico, que talvez concorde em posar para algumas fotos.
Isto, contudo, já é demais, e você resolve voltar para casa. Encontra seu filho radiante: ele encontrou fotos, já recortou e as está colando, aliás, não só nas folhas de papel, como também nos móveis, nas paredes, por toda a parte: Dia do Índio é Dia do Índio! Mas, pergunta você intrigado, de onde ele tirou as fotos? Foi de um livro, caríssimo, que seu chefe, antropólogo amador, lhe emprestou, pedindo encarecidamente que cuidasse dele.
Você apanha o que resta do livro e joga-o na cesta de papéis, restando-lhe apenas ir dormir, porque o dever de casa você já fez.
R.L.
Ninguém pode deixar de se comover quando um filho volta do colégio trazendo pela primeira vez um tema para ser feito em casa. Você o olha e vê, não mais o menino, mas um homenzinho responsável. Pois é o que caracteriza todos nós, homens responsáveis: temos temas para fazer em casa, não nos desligamos jamais das preocupações. E agora seu filho saberá o que é responsabilidade.
Bem, não é para tanto. Para início de conversa, você tem de ajudar a fazer o tema. Aparentemente não é difícil: trata-se de colar numa folha de papel figuras de índios. Uma homenagem ao Dia do Índio, aliás muito justa, porque, se os índios não foram os primeiros a fazer deveres de casa, neste país, foram os primeiros a fazer casa. Só que esta homenagem envolve um problema: onde arranjar figuras de índios? Em revistas velhas, é logo o que vem à mente. Você se lembra de ter visto dezenas de fotos de índios em revistas, porque índio sempre é notícia ( ainda que os coitados preferissem, provavelmente, ser deixados em paz nas suas terras). Você vai procurar as revistas e aí, só porque você precisa de foto de índio, não encontra nenhuma. Há umas fotos de um cacique tomando posse na FUNAI, mas será que índio de terno e gravata é índio? O próprio cacique tem dúvidas quanto a isto, de modo que você resolve deixá-lo de lado. Também há fotos do Carnaval, mas, de novo: fantasia de índio nunca foi índio. Você compra então a Revista Geográfica, que sempre mostra fotos de gente e lugares interessantes, e lá há de fato uma foto de índias, só que não são brasileiras, e além disso estão nuas. "Estas são boas!" - grita o menino, e ainda que você concorde (por razões diferentes das dele, é óbvio), você teme ferir os pruridos da professora. Claro, você podia colar uma tira preta nas partes prudentes, como a censura fazia; mas aí a coisa já não é autêntica.
A esta altura, você já revirou toda a casa, para desespero de sua mulher, e concluiu: não há em casa nenhuma publicação com foto de índio. O jeito é ir a uma banca de revistas para ver se encontra algo que sirva. Só que são 23:00 e está chovendo, e a banca mais próxima está no centro da cidade. Contudo, dever de casa é dever de casa, e seu menino não pode fugir da responsabilidade. Ou melhor, você não pode fugir da responsabilidade. Sendo assim, você apanha o carro e vai até o centro. Chegando à banca, você começa a folhear as revistas, para irritação do italiano, que imediatamente pergunta o que você deseja.
Você diz a ele que quer uma revista com fotos de índios e ele compreende: ele também é pai e também tem de fazer lições para os filhos. Ele não tem nada do gênero, mas sabe onde mora um índio autêntico, que talvez concorde em posar para algumas fotos.
Isto, contudo, já é demais, e você resolve voltar para casa. Encontra seu filho radiante: ele encontrou fotos, já recortou e as está colando, aliás, não só nas folhas de papel, como também nos móveis, nas paredes, por toda a parte: Dia do Índio é Dia do Índio! Mas, pergunta você intrigado, de onde ele tirou as fotos? Foi de um livro, caríssimo, que seu chefe, antropólogo amador, lhe emprestou, pedindo encarecidamente que cuidasse dele.
Você apanha o que resta do livro e joga-o na cesta de papéis, restando-lhe apenas ir dormir, porque o dever de casa você já fez.
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